A investigação judicial portuguesa arrazada pelo juiz do processo ao ex-primeiro ministro Sócrates

Jose Socrates

Source: Getty Images

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Confira a crônica desta semana do correspondente da SBS, em Lisboa, Francisco Sena Santos.


Portugal viveu, vai para sete anos, com grande choque, consternação para uns, revolta para outros, a detenção do antes primeiro-ministro José Sócrates.

Este socialista tinha governado Portugal durante seis anos, nos primeiros quatro com maioria absoluta.

Foi detido, com grande aparato, à saída do avião quando regressava de Paris a Lisboa.

Na ocasião foi muito controversa a constatação de que os procuradores que conduzia a investigação judicial tinham chamado uma televisão para transmitir tudo em direto e também causou polémica saber-se que a detenção era um método para tentar apanhá-lo porque de facto, naquela ocasião, havia suspeitas mas não havia provas.

Os procuradores partiam da observação de que Sócrates levava vida faustosa e sabia-se que recebera grandes quantidades de dinheiro de um amigo. Ambos explicaram que eram empréstimos, mas os investigadores defendiam que seria corrupção que relacionava com favores dois dos principais grupos económicos portugueses, o Espírito Santo e a Portugal Telecom.

Verificou-se que nos meses e anos seguintes os procuradores passaram para a imprensa popular sucessivas pistas de investigação que depois se verificavam ser sentido.

Sócrates esteve detido na cadeia por um ano, isso não impediu o Partido Socialista, então liderado pelo atual primeiro-ministro António Costa de voltar a formar governo, e ao fim de quatro anos de investigações, a Procuradoria Geral da República veio a acusar Sócrates da prática de 31 crimes graves, designadamente corrupção, branqueamento de capitais e fraude fiscal. Com ele, também acusados os então líderes do grupo Espirito Santo, Ricardo Salgado e da Portugal Telecom, Zeinal Bava, para além de outras 25 pessoas também pronunciadas numa acusação com quatro mil páginas, que logo se notou serem vagas em provas.

O sistema judicial português determina que, após a acusação pelos procuradores do Ministério Público, haja uma fase que poderemos chamar de pré-julgamento, a fase instrutória em que, através de audiências presididas por um juiz é avaliado se a acusação tem consistência para que haja de facto julgamento.

Esta fase prolongou-se por 15 meses e o juiz de instrução quis ouvir, para além dos 28 acusados, mais 200 pessoas, como testemunhas.

Acaba de anunciar o veredito, que está a causar novo choque em Portugal, porque arrasa a acusação do Ministério Público.

O juiz apresentou ao longo de 3 horas, com rádios e televisões em direto, a súmula do veredito dele e não poupou nas palavras: detetou “especulação" em várias teses do Ministério Público e “fantasia” no agrupamento das diferentes partes do processo.

Afirma o juiz Ivo Rosa que "a acusação não prima pelo rigor necessário para que com base nela se extraiam as consequências jurídicas”, que “os argumentos do Ministério Público baseiam-se na especulação e fantasia”, acusa a acusação de “não apontar factos concretos sustentados com provas”, sendo “incoerente em termos cronológicos e lógicos”.

Foi o que está a ser chamado de terramoto na justiça portuguesa, com um ex-primeiro ministro a ter sido condenado na praça pública por sucessivas fugas de informação, afinal sem provas.

Há comentadores que estão a reclamar o imediato afastamento dosa procuradores que, no entanto, vão recorrer da decisão do juiz.

Sócrates celebrou o arraso da acusação, mesmo assim não está inocentado. É acusado de branqueamento de capitais e por isso é remetido por este juiz para julgamento.

Ao todo, havia 28 acusados de um total de 189 crimes.

Desses 189 crimes, restam 17.

Dos 28 acusados, apenas cinco são enviados para julgamento.

O juiz de instrução Ivo Rosa livrou Sócrates de ser julgado pelos crimes principais, os de corrupção. Mas concluiu que, apesar disso, ele terá sido corrompido, só que pelo amigo. Ou seja, a acusação falhou ao não acertar no corruptor, e agora o prazo já prescreveu, já não pode haver acusação.

Ou seja, a acusação foi incompetente, e isso beneficia Sócrates.

A acusação é acusada de querer tudo e mais alguma coisa, envolvendo na corrupção o poder político e os colossos empresariais quando afinal, a chave era um amigo intermediário para supostos favores a grupos imobiliários. Daí a Portugal Telecom ter sido absolvida de tudo.

Os dois antigos homens fortes da Portugal Telecom, Zeinal Bava e Henrique Granadeiro, ficaram associados à derrocada do antigo colosso empresarial, mas o juiz Ivo Rosa rejeitou a tese do Ministério Público de que receberam “luvas” de Ricardo Salgado para gerir o grupo de telecomunicações ao sabor dos interesses do seu principal acionista, o Grupo Espírito Santo.

A Ordem dos Advogados defende que a Procuradoria (que conduziu a acusação) deve dar explicações sobre o que se passou neste processo e salientou que a situação justifica uma “profunda reflexão sobre o funcionamento da Justiça”.

“Quando uma acusação do Ministério Público é rejeitada na sua maior parte por um juiz de instrução, invocando mesmo deficiências na formulação dessa acusação ou falta de prova dos factos alegados, torna-se essencial que sejam prestadas explicações públicas sobre o que se terá passado para que tal tenha ocorrido”, lê-se numa nota de imprensa da Ordem dos Advogados.


A socialista Ana Gomes considerou que a decisão do juiz “é arrasadora para a justiça e para o Ministério Público”. Explicou :“Acompanhei [a leitura] com crescente preocupação e estou com o coração pesado. É avassalador. E estou de coração pesado, porque isto faz o jogo de todos os inimigos da democracia e da criminalidade organizada, que vai continuar”.

Há, conclua-se, uma realidade: Por muitas “incoerências”, “incongruências”, ou falta de lógica da acusação (“mentiras”, diz José Sócrates), há uma evidência material que continuará por aí a perturbar a paz de espírito: dinheiro, muito dinheiro que circulou ilegalmente.

Em três das mais marcantes horas da história da Justiça portuguesa, o juiz Ivo Rosa demoliu peça a peça anos de investigação, enterrou o trabalho de vários magistrados e agentes judiciais e arrasou o processo judicial mais simbólico e importante em muitas gerações.

Porquê? Porque a acusação não foi competente a reunir provas. Também porque o período curto da prescrição de crimes leva à não punição.

Neste caso, o juiz disse estar convencido de que Sócrates foi corrompido, só que não há provas e, por isso, não pode ser acusado, julgado e condenado. Para além do mais, neste momento, após tanta demora da justiça, o crime já teria prescrito, o processo, portanto arquivado.

É assim que, agora, de 189 crimes, restam 17.

Dos 28 acusados, apenas cinco são enviados para julgamento, sobretudo por branqueamento de capitais, em tudo isto a única realidade que não prescreve.

José Sócrates ainda pode ser condenado a prisão por branqueamento de capitais, mas livrou-se das acusações mais graves, de corrupção, e até já reclama indemnização pelos danos que lhe estão causados: como agora há recurso por parte dos acusadores, este processo vai continuar por vários anos, com a confiança dos portugueses na justiça, muito abalada.

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